Texto: Joana Ribeiro
Fotos: Daniel Sampaio
Se a música que se ouve no Santa Maria Summer Fest não é para meninos, aguentar três dias de concertos praticamente sem intervalos sob o sol abrasador do Alentejo também não. Ainda assim, íamos determinados.
Chegados ao recinto, passamos pela zona “lounge” e das barracas de comida que, notamos com agrado, este ano são mais e com variedade, em direcção ao palco 2 (que, este ano, não era de entrada livre) onde tocam os Liber Mortis. Passaram quase despercebidos, a actuar para um público ainda esparso e ligeiramente indiferente, cenário natural para primeira banda do primeiro dia. Depois deste começo morno, dirigimo-nos ao palco principal para ver Booze Abuser. Os thrashers, sempre prontos a fazer a festa, foram recebidos com um pouco mais de entusiasmo. O vocalista passou mais tempo fora do palco que dentro dele, misturando-se com o público que o ajudava a entoar cânticos de veneração à cerveja, e não faltaram as piadolas sobre futebol ou a bandeira de Cascais, a improvável terra de onde são oriundos.
A estreia das bandas internacionais neste primeiro dia fez-se com Noctem, que se revelaram uma das melhores surpresas do festival para quem, como nós, nunca os tinha visto. A impiedosa bateria pontuou a actuação arrebatadora que se afirmou como uma das mais interessantes em todo o festival, pelo menos no que ao black metal toca. Precisamente o contrário do que se pode dizer de Rotten Sound, penúltima banda do palco 1: apesar de estar bem cheio, as muitas expectativas em torno da banda saíram algo defraudadas num concerto que não soube passar a intensidade do seu som e que a certa altura começou a soar repetitivo.
Seguiu-se uma hora de quietude e introspecção – depressão induzida via Hypothermia, com um som cada vez mais próximo do post-rock, quase sem recurso a vocalizações excepto os já característicos lamentos dilacerantes. O ideal seria talvez que tivessem encerrado a noite, já que não agradou a todos: houve queixas de que foi “muito parado”, mas aqueles que eram desta opinião deixaram imediatamente de ter razões de queixa com o festim que foi Trollfest. Não houve quem não ficasse rendido à boa disposição do galhofeiro colectivo, constantemente a puxar pelo público, ordenando-lhes até que formassem uma conga line que deu a volta ao recinto. Dançar era imperativo e as músicas ficaram no ouvido bem depois de termos abandonado Beja – sobretudo a cover de Britney Spears (sim). Quer se goste ou não de folk metal tem de se reconhecer que foi um dos momentos altos do festival.
A noite terminou com a fúria punk de Dokuga, cujo vocalista surgiu com uma máscara que depressa perdeu, com os mais entusiasmados junto ao palco a apoderarem-se do adereço. Tivemos direito a música nova do split com Systemik Violence, que está para sair, e a um mosh concorrido que deixou toda a gente aquecida para o contínuo dos festejos em forma de DJ set.
A actuação pela terceira vez consecutiva no Santa Maria é prova da boa fama de que Paulo Colaço goza junto do público deste festival. Acompanhado da costumeira viola campaniça e, desta vez, de um elemento bem mais novo (um miúdo meio acanhado que o acompanhava na guitarra em alguns temas), pôs toda a gente a rir com as suas histórias e “intros” explicatórias para as músicas. Àquela hora, sombra era coisa que não abundava, e quase todos se amontoavam sob a pouca existente, ainda bastante longe do palco – mas esta distância quase não se notou, pois a adesão do público era geral, batendo palmas e entoando “amodafaca!” É impossível ficar indiferente à versatilidade de Paulo Colaço – havia kuduro e hip hop mascarados de música tradicional – e ainda mais ao seu modo castiço de se apresentar, cheio de sotaque e jeitos alentejanos. A Coruja, que se seguiram, tocaram claramente à hora errada – estava visto que algo tão mortiço logo a seguir ao concerto anterior não ia funcionar. Muito pouca gente estava a ver e até esses abandonaram o espaço com descrença após o quarteto ter anunciado uma cover de Pedro Abrunhosa.
Process of Guilt é daquelas bandas que se deve ver de forma muito bem doseada. É uma banda pesada, no verdadeiro sentido da palavra, e a estrutura intrincada das músicas arrastadas faz com que seja difícil manter o foco durante muito tempo sem que tudo comece a parecer cansativo. No entanto, as novas músicas pareceram agradar a muita gente e a presença em palco e capacidade vocal de Hugo Santos são sempre de apreciar.
Foi um dia forte para o black metal, com Naðra e Misþyrming a provar o porquê de o black metal islandês ser tão falado actualmente. Mas de facto, e apesar de os membros serem praticamente os mesmos (o que é obrigatório mencionar, visto que actuar duas vezes no mesmo dia no espaço de apenas poucas horas não é para todos) foi evidente a discrepância de qualidade entre as duas actuações: se Naðra deram um concerto competente, mas sem nada de mais a assinalar (e sofrendo ainda por terem tocado durante a tarde sob um calor tórrido, algo que não combina nada bem com este tipo de som), Misþyrming foi visivelmente superior, juntando os mais variados públicos num espectáculo intenso, onde o headbang não distinguia entre apreciadores ou não apreciadores de black metal.
Tivemos ainda Urfaust, uma das bandas mais aguardadas – a sua única passagem por Portugal já vai longe – em que o baterista se afirma desde o primeiro momento como figura central, com o guitarrista sempre discreto e sem estabelecer sequer contacto visual com o público. Já o primeiro usa e abusa de todo o tipo de contacto e a intensidade é a sua marca: gesticula como um possuído, toca com uma vontade desconcertante, desafia o público. Nos intervalos, faz cocktails – aí percebemos o altar feito de garrafas no palco. A setlist bem podia ter incidido mais sobre o novo “Empty Space Meditation”, e apenas na última música recorreram aos synths mas, em todo o caso, foi um excelente concerto. Até King Dude parecia ser desta opinião: era possível vê-lo, no backstage, a vibrar com o concerto. Infelizmente, não se pode dizer que a sua actuação tenha sido algo de marcante: não passou de frouxo, algo deslocado da sonoridade geral do festival, com as músicas a sucederem-se umas às outras sem qualquer apelo. Embora fosse notório o seu esforço em adaptar o registo, assumir a diferença e optar por um set mais curto e semi-acústico, como aquele que apresentou na sua primeira passagem por Portugal, poderia ter sido mais eficaz.
Este segundo dia foi encabeçado pelos brasileiros Krisiun, que levaram a multidão à loucura com a força bruta do seu death metal. O entusiasmo fora de série e constante expressão do seu carinho pelo público português foram ingredientes essenciais deste grande concerto. Mas o momento mais especial da noite foi sem dúvida a actuação de Mão Morta. Os portugueses mostraram bem a razão de ocuparem um lugar tão destacado no cartaz e que o rótulo que muitas vezes lhes é atribuído de melhor banda de rock em Portugal não é em vão. Adolfo Luxúria Canibal, teatral como o conhecemos, ia declamando para uma respeitável massa de gente, transformado no íman das atenções de todos quantos testemunhavam, quer fossem fãs de longa data a acompanhá-lo nas letras ou apenas curiosos. Após muita reivindicação pelo encore (e pela “Budapeste”), agradeceram o carinho do público, mas optaram por encerrar o espectáculo com “Arrastando o seu cadáver”.
Por fim, os filhos da terra Reactive Lust encerraram a noite, com uma sonoridade gótica bem apelativa. A assistência era considerável, para a hora avançada; uma dança frenética tomou conta dos corpos, contagiando mais e mais gente, numa rave inesperada que constituiu uma boa surpresa.
Dia 3
Ao terceiro dia, o calor já se tinha tornado bem mais que insuportável; a cerveja gelada e os borrifadores usados para o combater pareciam fazer cada vez menos efeito. Assim, as primeiras bandas, apesar dos seus esforços, tiveram dificuldade em arrancar algum tipo de reacção do público, que parecia completamente drenado de energia. Só em Tales for the Unspoken se começou a notar alguma resposta. O recurso a voz limpa, apesar de soar estranho por vezes, resulta bem no geral, e foi agradável ouvir algo que se distanciasse um pouco do estereótipo de som que esperamos das bandas portuguesas neste tipo de festivais. Sempre comunicativos, portaram-se bastante bem, provando a sua qualidade e justificando a considerável fama de que já gozam junto do público.
O afastamento do tradicional continuou com Hochiminh, mas desta vez não se pode qualificar a surpresa como tão agradável. Pareciam ter sido incluídos para acrescentar mais um género ao cartaz e a partir de umas três ou quatro músicas começou a não haver grande paciência para o seu metalcore, situação que se agravou quando assassinaram por completo um tema de Depeche Mode. Muitos pareceram cépticos e envergavam as suas melhores caras de confusão pela inclusão da banda no cartaz, mas ainda assim havia quem parecesse apreciar bastante e aproveitasse o momento para fazer as danças mais estranhas em frente ao palco.
Esperávamos mais atenção ao único artista de hip hop do festival, Fuse; o recinto estava bastante desolado. A actuação foi pautada pela atitude frontal, mas simples e relaxada, que fez as delícias dos poucos presentes. Fuse assumiu ainda ser fã de Exodus e querer ver umas quantas bandas nesse dia, reforçando assim o elo, por vezes pouco óbvio, entre o hip hop e o metal, ambos géneros marginalizados e extremos, que se tocam em muitos pontos. A aposta do SMSF em música “sem guitarras” é um aspecto muito positivo e que merece investimento.
Tendo de nomear a actuação do dia, a escolha recai claramente sobre Orphaned Land, que deram provavelmente o concerto mais memorável da edição de 2017. É frequente a mensagem de cariz político no metal, no punk, no grind – mas poucos o fazem como os Orphaned Land. Cativaram desde o primeiro segundo, tanto pela simplicidade e humanidade evidentes no discurso do líder, como pela mistura muito própria e interessante de death e progressive metal com música tradicional do Médio Oriente – é impossível não ficar completamente enlevado. A bailarina oriental que acompanha a banda em concerto deixou todos boquiabertos com a sinuosidade dos seus movimentos e contribuiu para o efeito geral de deslumbramento. Foi enternecedor ver a recepção dos presentes à forma de estar e filosofia da banda, com toda a gente a mexer, a entoar as melodias que mais ficam no ouvido tais como as de “Sapari”, “Norra El Norra” e “All Is One”, enquanto agitavam os braços e batiam palmas. Só este concerto faria valer a pena os quilómetros percorridos até ao deserto que é Beja, e só nos resta esperar que continuem com os frequentes regressos a Portugal destes últimos anos.
Exodus foram sem dúvida a maior enchente, debitando clássicos atrás de clássicos para um público extático que se agitava furiosamente. Durante a mais de uma hora de duração do concerto mantiveram sempre a energia no máximo, focados na absoluta destruição. É seguro dizer que uma revisão dos 4 grandes nomes do thrash incluíria Exodus, sem qualquer dúvida. Com um sólido concerto de Dread Sovereign pelo meio, mas que infelizmente se perdeu entre duas das bandas mais ansiadas da noite – Exodus e Wolfbrigade – amantes do d-beat já mal conseguiam conter o entusiasmo por ver o conjunto sueco, mas o seu concerto caiu em saco roto. A banda parecia ter as baterias a meio e, talvez devido à qualidade do som, não era possível perceber as subtilezas das músicas, pelo que depressa começou a soar tudo ao mesmo, resultando numa monotonia que não assenta bem numa banda tão demolidora como Wolfbrigade. Passar o concerto todo à espera de malhas como “Ride The Steel” e ouvi-la ao fim a meio gás foi uma desilusão. Esperávamos mais.
A fechar a noite, estiveram os RDB a berrar sobre singulares peripécias nas obras, o que pareceu divertir os poucos resistentes que ainda ficaram para os ver. Deram o seu máximo para encerrar de forma condigna este festival e acabaram numa nota bem-disposta, mas as pausas entre as curtas músicas quebravam o ritmo. Um final morno para um festival com um cartaz soberbo, que fica por vezes aquém daquilo que promete: imprevistos acontecem em todo o lado, mas uma organização um pouco mais cuidada poderia fazer uma grande diferença. Ainda assim, os momentos altos que esta edição nos proporcionou já ninguém nos tira, e são esses que iremos recordar.