Texto: Joana Ribeiro
Fotos: Daniel Sampaio
Gust foram um dos melhores exemplos de como por vezes o alinhamento se mostrou demasiado aleatório. Um concerto do qual poucas memórias sobram, que veio destoar completamente no meio das outras bandas e ao qual o público não teve, praticamente, reacção. Crítica extensível a The Arson Project, que actuaram mais tarde nessa noite, e onde também se verificou um cenário semelhante, apesar de já terem conseguido pôr mais gente a mexer. Gostamos de pensar que há espaço para o hardcore no cartaz, mas algo não funcionou a 100%.
A decorrer em simultâneo, Marthyrium e Nader Sadek, o que deve ter constituído uma decisão difícil para muitos. A curiosidade era bastante em ver Nader Sadek, que surgiram por entre os troncos despidos que improvisavavam uma floresta no palco – enquadramento perfeito para o seu som igualmente obscuro, death metal encorpado e elaborado que se revelou uma boa surpresa. Mesmo tendo de nos desdobrar entre estes dois concertos, conseguimos passar pelo de Marthyrium, invulgarmente cheio, e assistir ao suficiente para confirmar a nossa impressão desde a passagem pelo Invicta Requiem Mass, em Janeiro: o seu black/death metal impiedoso lança um manto de negrume que tudo cobre em seu redor e ao qual é impossível escapar. Em suma, qualquer que fosse a escolha, estávamos bem servidos.
À luz das velas, foi a vez dos Corpus Christii nos brindarem com a sua demonstração de fervor blasfemo. Música após música, somos corrompidos pelos riffs hipnóticos que vão injectando a sua ladainha de veneração a Satanás, terminando, para reforçar a ideia, com “All Hail Master Satan” entoado a uma só voz por vocalista e público. Concertos destes escapam a descrições e espelham exactamente o porquê de esta ser uma das bandas mais respeitadas do black metal português.
Akercocke são já parte da família, tendo encabeçado duas edições do Barroselas e estando aqui a tocar pela quarta vez no festival, a primeira após um hiato de quatro anos que durou até 2016. Ora blast beats e riffs intrincados a uma velocidade estonteante, ora partes melodiosas e voz limpa, pareceram agradar ao público, particularmente aos apreciadores de um som mais progressivo. Igualmente agradável foi a notícia de que o sucessor de "Antichrist" sairá em Agosto, partilhada logo antes de tocarem "Disappear", malha do novo álbum.
Mas era, afinal de contas, Mayhem que toda a gente queria ver: a enchente do terceiro dia e t-shirts com o logo da banda para onde quer que olhássemos tinha de ter explicação. A multidão reunia-se bem junto ao palco – onde a colossal bateria de Hellhammer ocupava lugar central – numa enchente sem precedentes, ainda bem antes do começo do concerto. A atmosfera fantasmagórica rematada pelo badalar de um sino contribuiu para o build up de tensão que roçou o histerismo quando o público reconheceu a intro de “Funeral Fog” e particularmente aquando da entrada de um Attila Csihar envolto em andrajos. Começa a viagem por “De Mysteriis Dom Sathanas”, e tínhamos medo até de pestanejar, não fôssemos perder pitada daquela interpretação soberba, que só foi afectada, por vezes, pelo som demasiado “embrulhado”, e que teve como grande chave do sucesso a teatralidade: os cenários, as vestimentas, os apetrechos vários, como a cruz ou a caveira. Attila vai brincando com a chama das velas assentes numa espécie de altar, reforçando o carácter sobrenatural e ritualístico da cena. Subir ao palco estava proibido, mas tal é a energia nefasta e intocável que rodeia aquelas figuras em mantos negros que tampouco alguém se atreveria. Dizer que um momento é único parece não fazer sentido, já que todos os momentos o são, mas saímos dali meio assombrados, com a sensação que tínhamos testemunhado algo ímpar, que não conseguiríamos explicar mesmo que tentássemos. De qualquer forma, fica aqui a tentativa.
Contraste total no palco ao lado, com o 80’s thrash dos Lich King. O seu vocalista é daqueles que parece sempre meio enervado, e a sua hiperactividade total acabou por contagiar quem assistia; o mosh e as invasões de palco eram uma constante. A maior de todas deu-se já perto do fim, com cerca de 20 pessoas – incitadas, claro, pelo imparável vocalista – num ambiente de companheirismo e partilha que, digam o que disserem, foi muito bom de ver, numa época em que tantos artistas gostam de agir com superioridade e de encarar o palco como algo seu e ai de quem se aproxime. Os Lich King reforçam a sua posição ao terminar o set com a “Black Metal Sucks”, um ataque bem frontal e, diga-se de passagem, um retrato bastante preciso. Adoramos uma boa picardia.
Se tivéssemos de escolher apenas uma memória para levar deste Barroselas, escolhíamos, sem pestanejar, o concerto de Steelharmonics. Foi enternecedor e arrepiante testemunhar a interpretação da Banda Nova de Barroselas de alguns dos mais incontornáveis clássicos do metal, com o público a cantar a plenos pulmões as letras dos seus favoritos. Músicas de Black Sabbath, Iron Maiden, Slayer, Judas Priest, Megadeth, Metallica ou Motörhead ganharam uma nova vida sob a forma de instrumentos de orquestra. À nossa volta multiplicavam-se os elogios ao baterista ou aos solos do saxofonista, e acima de tudo, mais do que a dar uma performance irrepreensível, os músicos pareciam estar genuinamente a divertir-se tanto como nós, ao interpretar aqueles hinos. Despedindo-se com o encore da “Fear of the Dark”, saíram debaixo de uma estrondosa – e mais que merecida – ovação, e o desejo de repetir a experiência.
Ainda estávamos a sair de uma surpresa e já outra nos esperava: o espaço entre os dois palcos principais sido transformado num palco improvisado para os Test. Quase imediatamente o espaço se revelou demasiado pequeno para todos os que queriam assistir, mas a coisa aconteceu na mesma e com a mesma energia que no dia zero. A sua vontade de tocar parece insaciável – ao todo deram 3 concertos, nos 4 dias do festival – e quanto mais inusitado o sítio melhor. Infelizmente, terá passado um pouco despercebida uma das tão anunciadas surpresas do festival – The Fire March – por ter acontecido em simultâneo com Test e também pela sua brevidade. Um burburinho em volta de algo que ardia, e à bom tuga, seguimos o pequeno amontoado de gente para ver o que se passava. Afinal era uma curta procissão até à entrada do recinto, onde, em jeito comemorativo, se ateou fogo em volta da espada gigante, espécie de obelisco do festival. Em seguida cantaram-se os parabéns ao Barroselas. O efeito visual até foi engraçado, mas esperávamos talvez algo mais “em grande”. A noite encerrou com o habitual degredo dos Vai-te Foder, a apresentar o novo álbum “Poço”. O microfone foi do público em muitos momentos, para cantar os hinos do costume que todos sabem na ponta da língua, como “Bófia de Merda”, “Rock no Kanoa” ou até a mais recente “Thrash e Aparece” – em parte culpa da voz a falhar, provavelmente consequência de 4 dias de festa rija, mas seria preciso muito mais que isso para parar o rock. O festival teve o desfecho mais javardo – e, portanto, digno – que se poderia desejar.
Para além dos concertos que abordámos nesta review de 4 partes – muitos bons, outros nem tanto, alguns excepcionais –, parece imperativo mencionar o planeamento e dedicação postos em cada pormenor deste festival; não só nas condições que oferece (reparámos na inclusão de mais barracas de comida, o que é sempre um ponto positivo), mas também das actividades para todos os gostos que nos preencheram os dias: Brutal Soccer para os mais atletas, exposições de ilustração no SWR Café para os mais artistas (da qual destacamos a “Lord of the Logos”, de Christophe Spazjdel, que esteve presente para falar sobre o seu trabalho), karaoke after hours e meet & greet com alguns dos artistas que actuaram no festival – embora, com toda a correria e afluência, por vezes o contacto não fosse o desejado e se transformasse mais num “take a picture & leave”, o que é compreensível. A verdade é que um festival podia facilmente acontecer sem todas estas actividades paralelas, mas dificilmente seria tão marcante e é também isto que faz do Barroselas algo tão grande. Por cada coisa que correu menos bem, há muitas mais que compensaram largamente. Só assim se explica que, segunda-feira de manhã, e apesar do profundo cansaço, já sentíssemos um certo desalento perante a ideia de arrumar as trouxas e voltar à nossa vida de todos os dias, sabendo que só daqui a um ano voltaremos a repetir a dose. Mas pelo menos é uma certeza.