Texto: Joana Ribeiro e Daniel Sampaio
Fotos: Daniel Sampaio
Coube aos franceses Aluk Todolo a inauguração deste Amplifest. Por entre jogos de luz e sombra, com uma lâmpada reactiva aos acordes de guitarra a iluminar e escurecer a sala conforme a intensidade da música, induziram-nos numa espécie de transe provocado pela repetição de ritmos complexos e encadeamento das músicas umas nas outras, tornando-se muitas vezes indistinguível onde começava uma e acabava outra – uma intenção já demonstrada em álbum, gravado com um contexto ao vivo em mente. A própria postura dos músicos em palco e a sua quase inexistente interacção com o público – quando a houve, chegou de rompante e sobressaltou toda a gente – contribuiu para o misticismo do ambiente, que deixou mais do que evidente o significado do slogan do Amplifest: “Não é um festival, é uma experiência”. Uma experiência que se estendeu de facto para lá do que qualquer um esperava, pois, findada a apresentação de “Voix”, o álbum lançado este ano, os músicos regressaram ao palco e decidiram brindar-nos com "VII" e "VIII", de “Occult Rock”, relembrando-nos a sua passagem pelo Hard Club em 2013, que introduziu a banda a vários amplifesters entusiasmados pela oportunidade de aqui os ver novamente.
No dia seguinte, chegámos cedo ao Hard Club para assistir ao concerto de Redemptus, uma das bandas mais jovens no cartaz mas nem por isso menos entusiasmante, tendo sido a banda escolhida para estrear os palcos no primeiro dia “oficial” do evento. Envergando capuzes negros, como que anunciando um destino adverso pelo qual todos ansiávamos, corromperam a atmosfera com o som sujo e distorcido a que já ficámos rendidos em “We All Die The Same”. “Society makes us believe we need to live with an 18 year old body all our lives /but I live just fine with who I am!” entoou como um mantra pela Sala 2 do Hard Club, imprimindo nos presentes uma nota de alento e insurgência que contrasta e ao mesmo tempo tão bem se coaduna com o sludge que praticam, esse som exímio em fazer-nos sentir o nojo em sermos e estarmos vivos. Perto do final, houve direito à presença de David Duarte em palco, vocalista convidado em “True Truth”, e ainda à apresentação de dois temas novos, um deles a fechar o concerto. Pela reacção do público, este não podia ter terminado de melhor forma.
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A diversidade nos temas escolhidos foi um ponto positivo, pois apesar de a paragem obrigatória ser o mais recente lançamento, “Semente”, sobressaindo temas como “Corpo Presente” e “Relíquia”, o EP “Cidade” foi também interpretado integralmente (sendo que “Cidade – Parte 1” nunca havia sido tocado ao vivo), o que resultou numa espécie de envolvente curta-metragem sinestésica e num verdadeiro regalo para os que apreciam declamação.
No domingo, “Re:Un”, álbum dos Névoa editado pela consagrada Avantgarde Music, foi tocado pela primeira vez ao vivo, na sua totalidade. Desde o início, tornou-se claro o modo como os Névoa se demarcam da simples designação de black metal (será que ouvimos laivos de Amenra logo em “I Communion”?), e todo o concerto avançou sem compromissos em relação ao que se comprometeram a fazer: de riff em riff, com a ajuda de João Pedro Amorim, dos Memoirs of a Secret Empire, na percussão, bem como os já habituais Miguel Béco de Almeida na segunda guitarra e backing vocals e Ivo Madeira no baixo, os Névoa provaram que um álbum de grande qualidade mas que por vezes aparenta perder-se um pouco numa audição em casa resulta incomparavelmente melhor ao vivo, intensificado não só pela forte presença dos músicos em palco mas também pelas projecções e pelo jogo de luzes cuidadosamente escolhido, oferecendo ao público que já os conhecia o prazer de ver uma jovem banda a evoluir de forma acentuada, e ao público internacional, talvez não familiarizado com o grupo, (mais) um motivo para estar atento ao panorama nacional. Quanto aos Névoa, estão muito bem encaminhados para começar a pisar palcos internacionais. A coesão entre os membros é já notável, seja no sincronismo entre a bateria de João Freire e a guitarra de Nuno Craveiro como entre a voz deste e a de Miguel; com algum cuidado acrescido no som das guitarras, por vezes mais embrulhado e, consequentemente, menos possante do que seria de desejar, abalroarão qualquer um.
Embora tenhamos ido assistir à prestação das bandas nacionais, não ficámos indiferentes a tudo o mais que aconteceu ao longo do fim de semana. O documentário sobre a digressão dos Melvins por todos os Estados americanos em 51 dias provou que, depois de tantos anos de carreira, continuam os mesmos putos de sempre, unidos numa banda para se divertirem e ajavardar, seja em Washington ou no Iowa. Por problemas técnicos, a sessão começou com um pequeno atraso que influenciou as bandas seguintes; a organização fez questão de pedir desculpa pelo imprevisto, colocando à porta da Sala 1 um aviso acerca dos novos horários para as primeiras bandas; a meio da tarde, já tudo estava resolvido, e todos os concertos respeitaram a pontualidade a que já estamos habituados no Amplifest. Entre eles, fomos agraciados com a apresentação do livro de Luiz Mazetto, “Nós Somos a Tempestade 2”, com mais uma fornada de entrevistas de bandas reconhecidas no meio do metal alternativo, várias delas presentes ao longo destes dias; a estreia de diversos discos em listening sessions exclusivas, de Ricardo Remédio e Memoirs of a Secret Empire até Mono e Okkultokrati; e a exposição da Error! Design, que se provou um sucesso, apresentando – e vendendo – vários dos belos cartazes que já produziram para algumas das nossas bandas favoritas, alguns deles inéditos para os concertos desta edição (infelizmente, até os melhores festivais têm das piores pessoas e, no fim do segundo dia, alguém decidiu roubar o último cartaz dos Neurosis. Difícil de compreender a dissonância cognitiva de alguém que desrespeita deste modo uma banda que admira).
Quanto às restantes bandas, é uma tarefa ingrata escolher favoritos, seja pela diferença de sonoridades, pela duração das respectivas carreiras, ou mesmo pelo seu posicionamento no line-up de cada dia. Como estabelecer uma hierarquia que posicione de forma justa o black metal fundido com death de uns Altarage, dando o seu primeiro (e convincente) concerto da carreira no sábado, face ao post-black que presta tributo aos primórdios de Altar of Plagues dos Hope Drone, que deram um concerto igualmente apelativo no domingo? Preferimos os crescendos emotivos dos Mono, fechando a Sala 1 no primeiro dia com chave de ouro, revisitando “Ashes in the Snow” e “Everlasting Light” do já clássico “Hymn to the Immortal Wind”, ou o instrumentalismo mais enérgico de uns Caspian, mantendo o público desperto, mas talvez mais sereno, entre os concertos demolidores de Névoa e de Hope Drone?
A inaugurar a Sala 1, o primeiro dia teve Minsk, post-metal na linha de Isis, com um concerto envolvente que nos deixaria no mood certo para o dia menos pesado do evento – que acabaria por ser um pouco quebrado por concertos que se afiguraram demasiado longos para o contexto em que estiveram inseridos e que talvez funcionassem melhor a solo, como o de Kayo Dot ou de Kowloon Walled City. Já com um som diametralmente diferente mas mais cativante para uma porção significativa do público foi o concerto de Anna von Hausswolff. Sem desprimor para a componente instrumental, o Amplifest habituou-nos a alguns slots dedicados a "divas", vocalistas femininas com uma voz inconfundível e que nos hipnotiza logo na primeira sílaba. Os exemplos mais flagrantes terão sido certamente o de Chelsea Wolfe, em 2013, e o de Marissa Nadler, no ano seguinte. Anna provou-se mais do que capaz de continuar essa tradição, justificando para lá de qualquer dúvida a sua rápida ascensão ao longo dos últimos anos.
Ao segundo dia, The Black Heart Rebellion juntou um público curioso em testemunhar o amadurecimento da banda em “People, when you see the smoke, do not think it is fields they're burning”, que, aliás, forneceu os pontos altos duma actuação travestida de ritual. As baixas luzes intensificavam a sensação de mistério e de algo de transcendente, e o modo como escapam aos típicos instrumentos utilizados no rock e metal intensificou uma das experiências mais inesquecíveis do festival, lembrando-nos nesse aspecto um pouco a prestação de HHY & the Macumbas numa outra edição. Mas a Church of RA tinha ainda mais para nos oferecer ao longo deste dia.
Oathbreaker deixou um rasto de destruição na Sala 1 do Hard Club. Caro Tanghe, com a sua costumeira presença intrigante em palco, cativou com uma suave voz cantada para logo de seguida embalar em vociferações de deixar o público colado à parede; provou-se mais confortável com a sua voz límpida nesta fase da carreira e demonstrou que esta é uma escolha puramente artística, tendo os seus berros arrepiantes a mesma potência de sempre. Para além das esperadas “Origin”, “Glimpse of the Unseen”, “As I Look Into the Abyss” ou “The Abyss Looks Into Me”, aguçaram-nos ainda a curiosidade com temas de “Rheia”, a sair brevemente, mas o posicionamento foi algo infeliz para os artistas que se seguiram, Downfall of Gaia e CHVE. Foram praticamente ofuscados pela actuação prévia, com a agravante de que em CHVE a sala começou a esvaziar, pois, para além dos problemas técnicos que deixaram o perfeccionista Colin H. van Eeckhout visivelmente irritado (chegando a pedir desculpa, através de um post na sua página do Facebook, pela sua "poor prestation") eram muitos os preocupados em garantir um lugar privilegiado em Neurosis. E não sem razão: o espaço encontrava-se a abarrotar.
O que dizer sobre Neurosis? Em “Pain of Mind”, lançado há quase trinta anos, honraram as suas raízes hardcore, embora desviando-se por vezes do crust e dando a impressão de que aquilo não era bem o que pretendiam para a sua carreira. Depois, fizeram o que poucos conseguem (ou ousam) fazer: traçaram o seu próprio caminho, mesclando géneros sem qualquer preocupação pela recepção por parte dos críticos e do público, criando os pilares daquilo que viria a ser conhecido por post-metal. É difícil dizer como teria evoluído a música ao longo das últimas três décadas sem uns Neurosis; mais fácil, talvez indiscutível, será afirmar que uma grande percentagem das bandas que já passaram pelo Amplifest, tenha sido nesta edição ou nas cinco anteriores, foi de alguma forma influenciada por eles. Alguns dos seus álbuns poderão não ter envelhecido tão bem, mas outros, até mesmo “Souls at Zero”, lançado em 1992, soam surpreendentemente actuais, e poucas bandas têm o orgulho de poder apresentar uma discografia tão sonante, genuína e inspiradora. Começando, sem piedade, com “Times of Grace”, revisitaram ao longo de uma hora e meia tantas das malhas que os tornaram icónicos, como “Locust Star”, de “Through Silver in Blood”, “Stones from the Sky”, de “A Sun That Never Sets”, ou “Takeahnase”, de “Souls at Zero”, deixando o público em êxtase de cada vez que reconhecia os primeiros acordes de músicas que o acompanhou durante vários anos, sempre sem a oportunidade de as ouvir ao vivo, mas agora com Scott Kelly, Steve von Till e companhia a apenas alguns metros de distância, com uma energia que provava que trinta anos de bagagem não lhes pesavam nas costas. Pelo meio, duas amostras do seu próximo álbum, “Fires Within Fires”, a reforçar essa ideia.
Para os corajosos que se mantiveram no Hard Club após o tão esperado concerto, Prurient foi tanto uma recompensa como um banho de água fria. A sua electrónica, não menos meticulosa mas mais implacável do que a que nos foi apresentada por Roly Porter no dia anterior, fechou de modo perfeito o festival para todos aqueles que não presenciaram a extended experience, representando tudo aquilo que o Amplifest significa: o desafio, a exploração, a determinação em quebrar barreiras e ver onde isso nos leva. Para os restantes, Steve von Till fez o mesmo, num marcado contraste com o concerto dos Neurosis, ele e a sua guitarra acústica podendo ser vistos como a calma após a tempestade que confere o título ao livro de Luiz Mazetto. Seja qual for o futuro do Amplifest, não será fácil superar esta edição, mas estamos certos de que a Amplificasom o irá tentar.