Texto: António Pereira
Soubemos que esta não iria ser uma noite qualquer quando, logo à entrada do MusicBox, vimos o segurança a distribuir tampões para os ouvidos a quem entrava. “Pfff, isso é para fracos e para quem não está habituado à cena”, pensei eu na minha estultícia. Após 10 segundos de concerto, haveria de mudar de ideias, numa decisão a que se juntou um pedido de desculpas sincero aos meus tímpanos pelo meu orgulho insolente.
Filipe Felizardo foi o primeiro a subir ao palco e, desde logo, estabeleceu uma autêntica atmosfera de ritual tribal pós-apocalíptico; munido de uma - aparentemente antitética - guitarra semi-elétrica bonitinha e reluzente, lançou-se numa divagação instrumental que ora pendia para o noise puro, ora para uma ambiência mais melódica – sempre com o fuzz, omnipresente, em plano de fundo. Começava a surgir a ideia de estarmos a participar num culto ancestral, quer pela música que se fazia ouvir quer pelo sítio em questão – o Musicbox, com as suas colunas de pedra em jeito de catedral do oculto, parece ter sido feito especificamente para este tipo de música.
Depois de Filipe Felizardo nos ter deslaçado as amarras que nos prendiam ao plano terrestre, estávamos mesmo no ponto para sermos atirados para o abismo. Stephen O'Malley conseguiu o incrível feito de transformar aquela velha piada acerca dos Sunn 0))) (“cheguei meia hora atrasado a um concerto dos Sunn 0))), perdi os primeiros três acordes”) numa realidade. Mesmo os mais ambientados ao drone e aos recantos mais ocultos do doom devem ter ficado a princípio um pouco perplexos com o bombardeio sonoro a que foram sujeitos; é que em Sunn 0)))) e seus semelhantes, o noise ainda é, mesmo que num plano extremo, um instrumento ao serviço da criação de atmosferas e texturas musicais - mas aqui foi um fim em si mesmo. Se se pode dizer que Sunn 0))) é a música do elevador que faz a ligação entre os nove círculos do inferno, então aquilo que Stephen O' Malley produziu no MusicBox foi algo como os sons do vazio após sermos engolidos por um buraco negro.
Não se tratou propriamente de um concerto, mas sim de uma autêntica purga sónica, aquilo que Stephen O'Malley nos proporcionou. Ele próprio não se assumiu como performer, preferindo esconder-se num canto do palco para centrar as atenções naqueles que eram os verdadeiros protagonistas da noite: os amplificadores. Cinco full stacks imponentes e ameaçadores, quais monólitos em volta dos quais a multidão pagã se agrupava – Stephen O'Malley incluído – para participar no ritual em honra de São Decibel. Foi uma sensação incomparável estar sujeito a um som tão massivo, tão fisicamente palpável, como o que nos bombardeou ininterruptamente durante uma hora. Aquilo que os Hawkwind haviam profetizado há quatro décadas atrás em “Sonic Attack” estava a concretizar-se. Tudo tremia; o Musicbox parecia poder colapsar a qualquer momento, incapaz de conter tanta onda sonora.
Durante a hora que durou a purga, senti o equivalente sonoro a estar preso num forno com um fato de proteção que se ia degradando pouco a pouco. Os tampões para os ouvidos pareciam uma defesa muito frágil face a tamanha ameaça, e a certa altura comecei a sentir-me muito, muito vulnerável – sentia que a qualquer momento as ondas sonoras eram capazes de me esmagar e deixar a espernear como as duas ou três baratas visíveis no chão, vencidas por aquelas armas de destruição maciça a válvulas. (Stephen, já sabes: se a carreira musical um dia deixar de dar para pagar as contas, podes sempre criar uma empresa de desparasitação).
A certa altura tive de ceder ao poder dos Ampegs e Marshalls, e fazer uma retirada estratégica para as traseiras do espaço – uma travessia que se afigurou bem mais difícil do que previsto, pois a barreira sonora era de tal forma intensa que deslocar-me e manter o equilíbrio era uma tarefa árdua. Todo eu vibrava; sentia as minhas entranhas soltas e bambaleantes como gelatina; por todo o lado, pessoas de cabeça descaída e olhos fechados pareciam imersos nas profundezas do Vazio; alguns casais abraçavam-se e beijavam-se, naquilo que só posso imaginar tratar-se da sensação mais próxima que um humano poderá ter de fazer amor no interior de um buraco negro. Tudo era muito estranho, surreal, assustador... e incrivelmente fascinante.
Quando por fim os amplificadores deram tréguas, o silêncio era como que uma paisagem bucólica devastada pela guerra. Ainda estávamos a tentar reencontrar-nos a nós mesmos quando os Process of Guilt subiram ao palco para, segundo constava no anúncio do evento, “descomprimir” (deveria ser um aviso relativamente ao que nos esperava, quando uma banda como os Process of Guilt são escolhidos para tocar em último para que o público possa “descomprimir”...); e sem dúvida que assinaram uma prestação vigorosa e sem mácula, como já lhes é habitual... mas acabou por ficar a ideia de que muita gente ainda estava perdida a tentar perceber o que tinha acontecido na última hora, para que pudessem ter a atenção que mereciam.
E foi assim a noite de sábado. Os que vinham avisados e conseguiram entrar no espírito “da cena” deliraram; muitos outros devem ter passado a noite de sobrolho franzido e a coçar a cabeça em jeito de perplexidade. Mas tanto para uns como para outros, uma coisa é certa: esta foi uma experiência de que nunca mais se esquecerão.