"O Metal é por definição um género marginal e terá sempre associada uma certa aura de marginalidade."
Entrevista por: Daniel Sampaio
Entrevista por: Daniel Sampaio
Será Rui Veloso o verdadeiro “pai do rock português”? Terão sido os Tarantula a primeira banda a gravar um álbum de heavy metal em Portugal? Pode ser difícil encontrar respostas para algumas perguntas simples, principalmente quando estas dizem respeito a períodos pouco documentados e por vezes esquecidos pelo tempo. No entanto, foi exatamente a isso que Dico se propôs, tendo a sua investigação resultado na primeira (breve) história do metal português publicada em livro. Partindo dos primórdios do género, o autor construiu uma história coerente e informativa, que foi recentemente expandida com o lançamento, em 2016, da segunda edição da obra. Embora em tour pelo país para a apresentação do seu livro (as datas podem ser consultadas no Facebook), Dico arranjou tempo na sua agenda para ter uma (não tão) breve conversa com a Portuguese Distortion.
Portuguese Distortion - Já estás envolvido no jornalismo musical há bastantes anos. De onde partiu o interesse de entrares neste meio?
Dico - O Metal sempre foi a minha grande paixão, pelo que fazia todo o sentido aliá-lo àquela que veio a tornar-se a minha profissão - o jornalismo. A minha primeira experiência a nível de jornalismo musical foi na Metal Trail ‘Zine, em 1991 ou 92, quando o editor da zine (vocalista/guitarrista dos Violator) me convidou a escrever um artigo sobre os Iron Maiden, por saber que os britânicos eram a minha banda favorita. Escrevi também algumas críticas a discos para a zine, mas a experiência foi muito breve. Depois ainda tentei criar uma fanzine com um amigo meu (Dave “Mille”, que fundou comigo os Paranóia em 1988), a No More Denial, mas que nunca chegou a tornar-se realidade. Só em 1999 voltei a escrever sobre música, na revista Pl@yNet, pertencente ao grupo Semanário, onde comecei a destacar sites de bandas nacionais de Metal. Na revista católica Christus, pertencente ao mesmo grupo, publiquei um artigo de fundo sobre Metal Cristão [risos]. No fundo, desde que ingressei no jornalismo que comecei a “meter a colherada” do Metal [risos]. Depois, comecei a colaborar em revistas especializadas (Massacre!, Riff), sites (MetalOpenMind, 123Som.com, Soundzone), fanzines (Irmandade Metálica) e blogues (Daemonium, entre outros). Criei também os meus próprios blogues – Metal Incandescente, A a Z do Metal Português e Reflexões Musicais, que me proporcionaram uma boa visibilidade no setor do jornalismo musical.
Quando começou a surgir a ideia de publicar este livro?
Desde 2000 que pensava publicar um livro sobre o Metal português, mas nessa época seria algo apenas com uma extensa listagem de sites de bandas, webzines, editoras, programas de rádio e outros agentes underground nacionais. Depois, inspirado por enciclopédias estrangeiras como a Virgin Encyclopaedia of Heavy Rock a ideia evoluiu para a publicação de uma enciclopédia exclusivamente dedicada a biografias de bandas nacionais, mas não consegui reunir o capital necessário à publicação de um livro, pelo que fundei a já citada enciclopédia online A a Z do Metal Português.
Apenas em 2010 comecei a escrever os textos que seriam a base do Breve História do Metal Português, embora inicialmente não tivesse noção disso. Os textos foram publicados no blogue Soundzone década a década, até que a dado momento reparei que o volume de informação reunido justificava a publicação de um livro. A primeira versão da obra ficou disponível em dezembro de 2012, em formato PDF para download gratuito. Dois meses mais tarde foi editada a primeira versão em papel.
O que motivou esta nova edição?
Após a edição original em papel (que apenas retratava o período compreendido entre 1966 e 1999) recebi muitos pedidos para editar um segundo volume, que retratasse o Metal português até à atualidade, ou seja, desde 2000 até ao momento presente. No entanto, não fazia sentido editar um volume inteiro incidindo sobre apenas década e meia de música (2000/2015), quando o livro original retratava mais de três décadas (final da década de 60 e as décadas de 70, 80 e 90 completas).
Nos Agradecimentos do livro, não deixas de agradecer aos teus detratores por te ajudarem a melhorar o livro. Sem apontar nomes, encontraste muitas objeções à publicação desta História? O jornalismo musical, tal como a produção académica, tem alguma má fama em determinados círculos do underground.
Objeções propriamente não encontrei. Encontrei, isso sim, manifestações de profunda inveja, raiva e dor de corno por ter sido eu a escrever este livro e não os autores dessas lamentáveis manifestações. Após a edição original houve palhaços conhecidos no meio que afirmaram (alguns sob anonimato mas cujo estilo de escrita logo os denunciou) que ainda estava para ser escrita a “verdadeira” história do Metal nacional e que eram eles que a iriam escrever. Pois bem, ainda não vi esses livros. Onde estão? Dá trabalho investigar e escrever, não dá? Falar é fácil, passar à ação é mais difícil. Como portugueses típicos, mais vale ficarem-se pelas palavras e dizer mal dos projetos com valor e dos seus autores, que tiveram a coragem de os concretizar. Eu não – eu passo aos atos, e com 100% de financiamento próprio.
Houve um caso engraçado de uma pessoa que, embora não se arrogando a ambição de escrever um livro concorrente, afirmou logo aquando da edição original que não comprava a obra por ter “ouvido dizer” que lá faltavam coisas. Tive educadamente de lhe explicar o significado da palavra “breve”, e que era precisamente por lá faltarem relatos e por outros estarem resumidos que o livro se chamava “Breve História do Metal Português” e não “História Extensa do Metal Português”. Perguntei-lhe também se emprenhava pelos ouvidos ao ponto de acreditar em qualquer um.
É impossível escrever uma história 100% completa do Metal português ou de qualquer outro país, precisamente porque cada pessoa terá um ângulo de análise e um entendimento das coisas diferente das restantes. A questão é que não ando aqui para agradar a gregos e a troianos – faço o melhor possível e quem julga que não que faça melhor. Não quero com isto dizer que não se pode fazer melhor, com certeza que sim, mas então façam-no. Provem-no. Atirem-se ao trabalho.
O exemplo que relatei acima ilustra bem a desunião e maledicência que reina no Underground nacional hoje em dia. Nos anos 80 e 90, se alguém tivesse escrito um livro sobre a cena nacional, independentemente daquilo que se dissesse, as pessoas ficariam curiosas e quereriam lê-lo, custasse o que custasse. Hoje não. Boicotam orgulhosamente os projetos, à partida. Quando comecei a divulgar a capa da nova edição do livro, em janeiro, o primeiro comentário que escreveram no Facebook foi: “que capa tão feia”. Palavras para quê?
Qual a maior dificuldade que encontraste durante a investigação que resultou neste livro?
A maior dificuldade foi encontrar a verdade dos factos entre inúmeras versões, especialmente no que se refere aos anos 60, 70 e algumas fases dos anos 80. Além disso, vários músicos já não estão facilmente contactáveis porque deixaram a música e outros não querem falar sobre a obra antiga, mas aqueles que consegui entrevistar foram incansáveis. Também a procura de números específicos de algumas publicações nem sempre foi fácil, e o fator tempo também obrigou a uma luta constante.
Referes que, nos primórdios do rock‘n’roll nacional, muitas bandas terminaram precocemente devido ao Serviço Militar Obrigatório (SMO), que transportava para a guerra os seus membros. Como dirias que a ditadura que se viveu até 1974 influenciou o surgimento do metal ou os temas abordados?
Estivemos durante décadas mergulhados numa ditadura altamente limitativa a todos os níveis, que nos afastou do mundo exterior e condicionava os mais pequenos passos do nosso dia-a-dia. Tudo se agravou com a Guerra Colonial, que roubou muitos elementos às bandas de Ié-ié (forma como o Rock’n’roll era conhecido na época em Portugal) para combaterem em África. Uns voltaram, outros não. Outros regressaram marcados física e psicologicamente para sempre. De qualquer forma, foram largas centenas as bandas cuja existência chegou ao fim devido ao ingresso de elementos seus no SMO ou à contingência de se exilarem no estrangeiro, a estudar (provenientes de famílias abastadas) para fugir à guerra.
Ora, o conflito militar e todas as suas consequências, os elevadíssimos índices de pobreza que grassava no País (e que se traduziam em inúmeras situações de fome), a colonização, a repressão, os presos políticos, os históricos níveis de emigração, o anseio de contestação à autoridade (que não podia ser feita de outra forma que não clandestina), a falta de liberdade e a inacessibilidade à informação e à cultura revelavam-se terreno fértil para que os grupos de Rock da época abordassem alguns desses temas nas suas músicas, maioritariamente de forma subtil (os grupos que cantavam em Inglês eram menos “solicitados” pela Censura, que não dominava o idioma). O Rock é, por definição, contestatário, independentemente de ser mais ou menos pesado. Portanto, a génese do inconformismo expresso pela música pesada em Portugal reside na viragem dos anos 60 para a década seguinte, através de artistas como Beatnicks, Quarteto 1111, José Cid, entre outros (a tendência acentuou-se no final da década com a emergência do Punk nacional, através dos Faíscas e dos Aqui Del Rock). As bases para o inconformismo inerente às bandas praticantes de música pesada estavam lançadas.
Ainda acerca desse tema, dizes que a “contracultura” nacional durante a década de 70 manifestou-se não através do rock, mas através de cantautores como Zeca Afonso ou José Mário Branco. Sentes que isso relegou a música pesada para um segundo plano, tirando-lhe legitimidade?
De facto, após a Revolução, os cantautores ascenderam, legitimamente, a porta-estandartes da contestação social e política. Eram figuras que, pela sua postura antirregime e anti-colonização, sofreram contínuas formas de repressão e censura, que se viam obrigadas a concretizar a sua arte na mais pura clandestinidade. Portanto, na fase pós-Revolução os cantautores relegaram de facto o Rock, e especialmente o Rock mais pesado, para segundo plano, mas não lhe retirou legitimidade. O Rock foi remetido, isso assim, a um nível mais underground. Na verdade, o fogo vinha de todos os lados: nos primeiros anos após o 25 de Abril as fações populares de direita entendiam o Rock como um produto cultural comunista, mas para os comunistas era uma representação do imperialismo yankee [risos]. Ou seja, os rockers e respetivos fãs eram “presos por ter cão e por não ter”, como diz o ditado.
Outro aspeto que achei interessante diz respeito à língua. Nos primórdios do rock nacional cantavam-se covers em inglês; as bandas que compunham originais, contudo, faziam-no frequentemente em português; mas, mais tarde, a língua franca do heavy metal era o inglês. O que achas que motivou estas transições?
Nos primórdios do Rock nacional de facto as covers eram cantadas em Inglês por uma razão simples: todas as referências/influências musicais dos grupos Ié-ié provinham dos Estados Unidos e de Inglaterra – The Beatles, The Rolling Stones, Elvis Presley, Elton John, entre muitos outros. Portanto, os grupos nacionais tocavam nos bailes e nas festas os maiores êxitos desses artistas, pois era isso que o público gostava de ouvir. A dado momento, alguns desses grupos tiveram necessidade de se emancipar no que respeita ao repertório internacional que se viam obrigados a interpretar para ganhar dinheiro. Assim, começaram, a compor temas com letras em Português, que iam integrando no alinhamento dos espetáculos, em meio às versões dos grupos estrangeiros. Mais tarde, durante o boom do Rock Português, cantar em Inglês era um sacrilégio. Os grupos que o faziam eram insultados e alvo de arremessos com todo o tipo de objetos. Eram considerados traidores e representantes do imperialismo yankee, como referi anteriormente. Nesse período, cantar em Português era um imperativo de sucesso. Na verdade, ainda nos encontrávamos no rescaldo da Revolução e os acontecimentos do PREC também se mantinham bem presentes na memória coletiva, pelo que se viva um período de adaptação à Democracia e a tudo o que fora vedado ao País na vigência da ditadura. Entretanto, o boom do Rock Português esgotou-se enquanto fenómeno cultural. Como em todas as modas, dele se mantiveram apenas os melhores. Portanto, a implosão do boom, a par da adaptação do povo a uma nova realidade social e cultural, abriu caminho à aceitação do Inglês como língua universal. Acabou por se tornar natural cantar em Inglês.
Há quem diga que já não se faz música com a mesma qualidade de outrora; por outro lado, algumas pessoas acham que o crescimento do metal em Portugal tem sido imparável, tanto em quantidade como em qualidade. Concordas com alguma das posições? Há alguma “época de ouro” do metal português?
É absolutamente verdade que na última década e meia o Metal português tem crescido vertiginosamente em quantidade e qualidade de bandas. Não restam quaisquer dúvidas acerca disso. Nunca houve tantas bandas nacionais com nível internacional, muitas delas tão boas ou melhores do que algumas que nos chegam do estrangeiro. A música que fazem é, em geral, muito boa nos subgéneros em que se enquadra. No entanto, a tecnologia hoje disponível confere-lhe uma aura de excessivo “polimento”, de um planeamento que lhe retira magia e espontaneidade. Julgo que é a isso que os fãs se referem quando dizem que hoje já não se faz música como outrora – música espontânea, vinda do coração, envolta numa ingenuidade que lhe dava um charme incompatível com o profissionalismo mecânico de hoje.
Quanto à “época de ouro”, apesar de hoje vivermos o melhor momento de sempre a nível de oferta no Metal português, na minha opinião os anos 80 foram a Década Dourada. Foi então que se estabeleceram as bases edificadoras do Underground nacional, especialmente através dos clubes de fãs, dos fanzines, da Metal Army (que organizava concertos no Rock Rendez Vous, essencialmente), dos primeiros festivais underground, do tape-trading, das bandas e dos programas de rádio (com especial destaque para o “lança-chamas” e para o “Rock em Stock”), nomeadamente na segunda metade da década, com a emergência e proliferação das rádios-pirata em todo o país. Foi a emergência de todos estes fenómenos que nos permite, hoje, ter o cenário metaleiro que se vê. Contudo, como já referi, nunca estivemos tão mal a nível de cinismo, inveja, maledicência e facadas nas costas no meio underground.
Recentemente, o álbum “Extinct” dos Moonspell foi agraciado com o prémio de Melhor Disco pela Sociedade Portuguesa de Autores. Pensas que isto demonstra que o Metal já não é de todo um género marginal?
O Metal é por definição um género marginal e terá sempre associada uma certa aura de marginalidade, no sentido de inconformismo, de preservação de um posicionamento antissistema que permite a todos os seus agentes estar permanentemente vigilantes. Portanto, é determinante que o Metal não perca esse princípio de marginalidade, no bom sentido do termo, caso contrário perderia muita da sua genuinidade. É o facto de estar sempre de certa forma à margem da sociedade, fora do mainstream, que lhe confere a paixão e a intensidade que o caracteriza.
Diria que hoje o Metal é mais consensualmente aceite na sociedade portuguesa. É melhor “tolerado”, se quisermos. O estigma e o preconceito encontram-se muito mais atenuados. O Metal, a sua cultura e os seus fãs são hoje melhor aceites no nosso País. Para isso, em muito contribuiu o sucesso dos Moonspell, nomeadamente no estrangeiro, e a profunda envolvência do Fernando Ribeiro na elitista cultura lusa. Ao longo dos anos o frontman dos Moonspell conquistou o seu espaço no meio cultural português, o que trouxe uma imagem de cara lavada ao metal na preconceituosa sociedade portuguesa.
Tens alguma mensagem final para os leitores da Portuguese Distortion?
Desenvolvam projetos, mas projetos inovadores. Para fazer mais do mesmo já cá andam outros há muito tempo. Dinamizem e apoiem o Underground. E lembrem-se: tudo começou nas bandas, mas o Metal não se resume a elas. Há uma imensidão de outras coisas para descobrir.
Portuguese Distortion - Já estás envolvido no jornalismo musical há bastantes anos. De onde partiu o interesse de entrares neste meio?
Dico - O Metal sempre foi a minha grande paixão, pelo que fazia todo o sentido aliá-lo àquela que veio a tornar-se a minha profissão - o jornalismo. A minha primeira experiência a nível de jornalismo musical foi na Metal Trail ‘Zine, em 1991 ou 92, quando o editor da zine (vocalista/guitarrista dos Violator) me convidou a escrever um artigo sobre os Iron Maiden, por saber que os britânicos eram a minha banda favorita. Escrevi também algumas críticas a discos para a zine, mas a experiência foi muito breve. Depois ainda tentei criar uma fanzine com um amigo meu (Dave “Mille”, que fundou comigo os Paranóia em 1988), a No More Denial, mas que nunca chegou a tornar-se realidade. Só em 1999 voltei a escrever sobre música, na revista Pl@yNet, pertencente ao grupo Semanário, onde comecei a destacar sites de bandas nacionais de Metal. Na revista católica Christus, pertencente ao mesmo grupo, publiquei um artigo de fundo sobre Metal Cristão [risos]. No fundo, desde que ingressei no jornalismo que comecei a “meter a colherada” do Metal [risos]. Depois, comecei a colaborar em revistas especializadas (Massacre!, Riff), sites (MetalOpenMind, 123Som.com, Soundzone), fanzines (Irmandade Metálica) e blogues (Daemonium, entre outros). Criei também os meus próprios blogues – Metal Incandescente, A a Z do Metal Português e Reflexões Musicais, que me proporcionaram uma boa visibilidade no setor do jornalismo musical.
Quando começou a surgir a ideia de publicar este livro?
Desde 2000 que pensava publicar um livro sobre o Metal português, mas nessa época seria algo apenas com uma extensa listagem de sites de bandas, webzines, editoras, programas de rádio e outros agentes underground nacionais. Depois, inspirado por enciclopédias estrangeiras como a Virgin Encyclopaedia of Heavy Rock a ideia evoluiu para a publicação de uma enciclopédia exclusivamente dedicada a biografias de bandas nacionais, mas não consegui reunir o capital necessário à publicação de um livro, pelo que fundei a já citada enciclopédia online A a Z do Metal Português.
Apenas em 2010 comecei a escrever os textos que seriam a base do Breve História do Metal Português, embora inicialmente não tivesse noção disso. Os textos foram publicados no blogue Soundzone década a década, até que a dado momento reparei que o volume de informação reunido justificava a publicação de um livro. A primeira versão da obra ficou disponível em dezembro de 2012, em formato PDF para download gratuito. Dois meses mais tarde foi editada a primeira versão em papel.
O que motivou esta nova edição?
Após a edição original em papel (que apenas retratava o período compreendido entre 1966 e 1999) recebi muitos pedidos para editar um segundo volume, que retratasse o Metal português até à atualidade, ou seja, desde 2000 até ao momento presente. No entanto, não fazia sentido editar um volume inteiro incidindo sobre apenas década e meia de música (2000/2015), quando o livro original retratava mais de três décadas (final da década de 60 e as décadas de 70, 80 e 90 completas).
Nos Agradecimentos do livro, não deixas de agradecer aos teus detratores por te ajudarem a melhorar o livro. Sem apontar nomes, encontraste muitas objeções à publicação desta História? O jornalismo musical, tal como a produção académica, tem alguma má fama em determinados círculos do underground.
Objeções propriamente não encontrei. Encontrei, isso sim, manifestações de profunda inveja, raiva e dor de corno por ter sido eu a escrever este livro e não os autores dessas lamentáveis manifestações. Após a edição original houve palhaços conhecidos no meio que afirmaram (alguns sob anonimato mas cujo estilo de escrita logo os denunciou) que ainda estava para ser escrita a “verdadeira” história do Metal nacional e que eram eles que a iriam escrever. Pois bem, ainda não vi esses livros. Onde estão? Dá trabalho investigar e escrever, não dá? Falar é fácil, passar à ação é mais difícil. Como portugueses típicos, mais vale ficarem-se pelas palavras e dizer mal dos projetos com valor e dos seus autores, que tiveram a coragem de os concretizar. Eu não – eu passo aos atos, e com 100% de financiamento próprio.
Houve um caso engraçado de uma pessoa que, embora não se arrogando a ambição de escrever um livro concorrente, afirmou logo aquando da edição original que não comprava a obra por ter “ouvido dizer” que lá faltavam coisas. Tive educadamente de lhe explicar o significado da palavra “breve”, e que era precisamente por lá faltarem relatos e por outros estarem resumidos que o livro se chamava “Breve História do Metal Português” e não “História Extensa do Metal Português”. Perguntei-lhe também se emprenhava pelos ouvidos ao ponto de acreditar em qualquer um.
É impossível escrever uma história 100% completa do Metal português ou de qualquer outro país, precisamente porque cada pessoa terá um ângulo de análise e um entendimento das coisas diferente das restantes. A questão é que não ando aqui para agradar a gregos e a troianos – faço o melhor possível e quem julga que não que faça melhor. Não quero com isto dizer que não se pode fazer melhor, com certeza que sim, mas então façam-no. Provem-no. Atirem-se ao trabalho.
O exemplo que relatei acima ilustra bem a desunião e maledicência que reina no Underground nacional hoje em dia. Nos anos 80 e 90, se alguém tivesse escrito um livro sobre a cena nacional, independentemente daquilo que se dissesse, as pessoas ficariam curiosas e quereriam lê-lo, custasse o que custasse. Hoje não. Boicotam orgulhosamente os projetos, à partida. Quando comecei a divulgar a capa da nova edição do livro, em janeiro, o primeiro comentário que escreveram no Facebook foi: “que capa tão feia”. Palavras para quê?
Qual a maior dificuldade que encontraste durante a investigação que resultou neste livro?
A maior dificuldade foi encontrar a verdade dos factos entre inúmeras versões, especialmente no que se refere aos anos 60, 70 e algumas fases dos anos 80. Além disso, vários músicos já não estão facilmente contactáveis porque deixaram a música e outros não querem falar sobre a obra antiga, mas aqueles que consegui entrevistar foram incansáveis. Também a procura de números específicos de algumas publicações nem sempre foi fácil, e o fator tempo também obrigou a uma luta constante.
Referes que, nos primórdios do rock‘n’roll nacional, muitas bandas terminaram precocemente devido ao Serviço Militar Obrigatório (SMO), que transportava para a guerra os seus membros. Como dirias que a ditadura que se viveu até 1974 influenciou o surgimento do metal ou os temas abordados?
Estivemos durante décadas mergulhados numa ditadura altamente limitativa a todos os níveis, que nos afastou do mundo exterior e condicionava os mais pequenos passos do nosso dia-a-dia. Tudo se agravou com a Guerra Colonial, que roubou muitos elementos às bandas de Ié-ié (forma como o Rock’n’roll era conhecido na época em Portugal) para combaterem em África. Uns voltaram, outros não. Outros regressaram marcados física e psicologicamente para sempre. De qualquer forma, foram largas centenas as bandas cuja existência chegou ao fim devido ao ingresso de elementos seus no SMO ou à contingência de se exilarem no estrangeiro, a estudar (provenientes de famílias abastadas) para fugir à guerra.
Ora, o conflito militar e todas as suas consequências, os elevadíssimos índices de pobreza que grassava no País (e que se traduziam em inúmeras situações de fome), a colonização, a repressão, os presos políticos, os históricos níveis de emigração, o anseio de contestação à autoridade (que não podia ser feita de outra forma que não clandestina), a falta de liberdade e a inacessibilidade à informação e à cultura revelavam-se terreno fértil para que os grupos de Rock da época abordassem alguns desses temas nas suas músicas, maioritariamente de forma subtil (os grupos que cantavam em Inglês eram menos “solicitados” pela Censura, que não dominava o idioma). O Rock é, por definição, contestatário, independentemente de ser mais ou menos pesado. Portanto, a génese do inconformismo expresso pela música pesada em Portugal reside na viragem dos anos 60 para a década seguinte, através de artistas como Beatnicks, Quarteto 1111, José Cid, entre outros (a tendência acentuou-se no final da década com a emergência do Punk nacional, através dos Faíscas e dos Aqui Del Rock). As bases para o inconformismo inerente às bandas praticantes de música pesada estavam lançadas.
Ainda acerca desse tema, dizes que a “contracultura” nacional durante a década de 70 manifestou-se não através do rock, mas através de cantautores como Zeca Afonso ou José Mário Branco. Sentes que isso relegou a música pesada para um segundo plano, tirando-lhe legitimidade?
De facto, após a Revolução, os cantautores ascenderam, legitimamente, a porta-estandartes da contestação social e política. Eram figuras que, pela sua postura antirregime e anti-colonização, sofreram contínuas formas de repressão e censura, que se viam obrigadas a concretizar a sua arte na mais pura clandestinidade. Portanto, na fase pós-Revolução os cantautores relegaram de facto o Rock, e especialmente o Rock mais pesado, para segundo plano, mas não lhe retirou legitimidade. O Rock foi remetido, isso assim, a um nível mais underground. Na verdade, o fogo vinha de todos os lados: nos primeiros anos após o 25 de Abril as fações populares de direita entendiam o Rock como um produto cultural comunista, mas para os comunistas era uma representação do imperialismo yankee [risos]. Ou seja, os rockers e respetivos fãs eram “presos por ter cão e por não ter”, como diz o ditado.
Outro aspeto que achei interessante diz respeito à língua. Nos primórdios do rock nacional cantavam-se covers em inglês; as bandas que compunham originais, contudo, faziam-no frequentemente em português; mas, mais tarde, a língua franca do heavy metal era o inglês. O que achas que motivou estas transições?
Nos primórdios do Rock nacional de facto as covers eram cantadas em Inglês por uma razão simples: todas as referências/influências musicais dos grupos Ié-ié provinham dos Estados Unidos e de Inglaterra – The Beatles, The Rolling Stones, Elvis Presley, Elton John, entre muitos outros. Portanto, os grupos nacionais tocavam nos bailes e nas festas os maiores êxitos desses artistas, pois era isso que o público gostava de ouvir. A dado momento, alguns desses grupos tiveram necessidade de se emancipar no que respeita ao repertório internacional que se viam obrigados a interpretar para ganhar dinheiro. Assim, começaram, a compor temas com letras em Português, que iam integrando no alinhamento dos espetáculos, em meio às versões dos grupos estrangeiros. Mais tarde, durante o boom do Rock Português, cantar em Inglês era um sacrilégio. Os grupos que o faziam eram insultados e alvo de arremessos com todo o tipo de objetos. Eram considerados traidores e representantes do imperialismo yankee, como referi anteriormente. Nesse período, cantar em Português era um imperativo de sucesso. Na verdade, ainda nos encontrávamos no rescaldo da Revolução e os acontecimentos do PREC também se mantinham bem presentes na memória coletiva, pelo que se viva um período de adaptação à Democracia e a tudo o que fora vedado ao País na vigência da ditadura. Entretanto, o boom do Rock Português esgotou-se enquanto fenómeno cultural. Como em todas as modas, dele se mantiveram apenas os melhores. Portanto, a implosão do boom, a par da adaptação do povo a uma nova realidade social e cultural, abriu caminho à aceitação do Inglês como língua universal. Acabou por se tornar natural cantar em Inglês.
Há quem diga que já não se faz música com a mesma qualidade de outrora; por outro lado, algumas pessoas acham que o crescimento do metal em Portugal tem sido imparável, tanto em quantidade como em qualidade. Concordas com alguma das posições? Há alguma “época de ouro” do metal português?
É absolutamente verdade que na última década e meia o Metal português tem crescido vertiginosamente em quantidade e qualidade de bandas. Não restam quaisquer dúvidas acerca disso. Nunca houve tantas bandas nacionais com nível internacional, muitas delas tão boas ou melhores do que algumas que nos chegam do estrangeiro. A música que fazem é, em geral, muito boa nos subgéneros em que se enquadra. No entanto, a tecnologia hoje disponível confere-lhe uma aura de excessivo “polimento”, de um planeamento que lhe retira magia e espontaneidade. Julgo que é a isso que os fãs se referem quando dizem que hoje já não se faz música como outrora – música espontânea, vinda do coração, envolta numa ingenuidade que lhe dava um charme incompatível com o profissionalismo mecânico de hoje.
Quanto à “época de ouro”, apesar de hoje vivermos o melhor momento de sempre a nível de oferta no Metal português, na minha opinião os anos 80 foram a Década Dourada. Foi então que se estabeleceram as bases edificadoras do Underground nacional, especialmente através dos clubes de fãs, dos fanzines, da Metal Army (que organizava concertos no Rock Rendez Vous, essencialmente), dos primeiros festivais underground, do tape-trading, das bandas e dos programas de rádio (com especial destaque para o “lança-chamas” e para o “Rock em Stock”), nomeadamente na segunda metade da década, com a emergência e proliferação das rádios-pirata em todo o país. Foi a emergência de todos estes fenómenos que nos permite, hoje, ter o cenário metaleiro que se vê. Contudo, como já referi, nunca estivemos tão mal a nível de cinismo, inveja, maledicência e facadas nas costas no meio underground.
Recentemente, o álbum “Extinct” dos Moonspell foi agraciado com o prémio de Melhor Disco pela Sociedade Portuguesa de Autores. Pensas que isto demonstra que o Metal já não é de todo um género marginal?
O Metal é por definição um género marginal e terá sempre associada uma certa aura de marginalidade, no sentido de inconformismo, de preservação de um posicionamento antissistema que permite a todos os seus agentes estar permanentemente vigilantes. Portanto, é determinante que o Metal não perca esse princípio de marginalidade, no bom sentido do termo, caso contrário perderia muita da sua genuinidade. É o facto de estar sempre de certa forma à margem da sociedade, fora do mainstream, que lhe confere a paixão e a intensidade que o caracteriza.
Diria que hoje o Metal é mais consensualmente aceite na sociedade portuguesa. É melhor “tolerado”, se quisermos. O estigma e o preconceito encontram-se muito mais atenuados. O Metal, a sua cultura e os seus fãs são hoje melhor aceites no nosso País. Para isso, em muito contribuiu o sucesso dos Moonspell, nomeadamente no estrangeiro, e a profunda envolvência do Fernando Ribeiro na elitista cultura lusa. Ao longo dos anos o frontman dos Moonspell conquistou o seu espaço no meio cultural português, o que trouxe uma imagem de cara lavada ao metal na preconceituosa sociedade portuguesa.
Tens alguma mensagem final para os leitores da Portuguese Distortion?
Desenvolvam projetos, mas projetos inovadores. Para fazer mais do mesmo já cá andam outros há muito tempo. Dinamizem e apoiem o Underground. E lembrem-se: tudo começou nas bandas, mas o Metal não se resume a elas. Há uma imensidão de outras coisas para descobrir.